Deixem-me dizer uma coisa: há, sim, exceções à mediocridade que nos rodeia. Não se registra, hoje em dia, ao contrário do que muitos pensam, uma falta insuportável de obras criativas, de boas ideias, de bons livros e filmes. Se, como sustentação para abordar a "crise cultural contemporânea" (com excesso de "c"), você usar como argumento a ausência de um Shakespeare e de um Picasso, a programação dos canais de TV aberta e as músicas tocadas nas rádios, eu concordarei que os tempos são de aridez. Quem, no entanto, é bem informado e tem uma ativa vida cultural, lê ao menos um livro e assiste a alguns filmes por mês, prestigia exposições e ouve alguns CDs, com discernimento e sem preconceitos, sabe que existe, sim, gente bravamente produzindo coisa boa, coisa interessante, por esse mundão. O cenário está longe de ser animador, mas também não é apocalíptico.
A boa música, por exemplo, não deixou de existir, não. Nunca nos abandonou. Basta prestar atenção, que ela aparece. Como na pessoa de Karrin Allyson, cantora americana de jazz que começou nos anos 1990 e hoje é uma das mais respeitadas intérpretes contemporâneas. De voz levemente rouca, suave sem deixar de ser forte, Karrin já lançou onze discos, com repertório eclético, mas sempre pendendo ao jazz. Também adora música brasileira - tanto que gravou um álbum basicamente só com canções de Tom Jobim, "Imagina", de 2008. Ótima intérprete, é frequentemente saudada na imprensa americana como dona de grande capacidade de "roubar" canções para si, cantá-las como se ela as tivesse composto. Conheci-a há alguns anos, quando ouvi Night and Day, de Cole Porter, na voz dela, num arranjo acústico e bossa novístico. Depois ouvi-a também em Blame it on my Youth e numa delicada, mas intensa interpretação de Coração Vagabundo, uma das melhores de Caetano Veloso, que ela canta toda em português no disco "From Paris to Rio", de repertório brasileiro e francês. Foi o bastante para torná-la uma das minhas preferidas da "nova guarda" (na falta de expressão melhor). No mesmo "From Paris to Rio", Karrin defende uma versão bilíngue de "O Barquinho (My Little Boat)", de Roberto Menescal. Esforça-se no português e canta com swing e classe, como vocês podem ver no vídeo abaixo, registro de um show no Montreux Jazz Festival de 2003. Ela sabe o que faz.
Outra que sabe o que faz - dá aulas na faculdade de música de Berklee, inclusive - é a moça abaixo, Esperanza Spalding. Ela é uma grande revelação do canto jazzístico. E também toca baixo acústico muito bem. O vídeo, de uma apresentação na Casa Branca, com Barack e Michelle Obama na plateia (Mr.
President, aliás, gosta muito de jazz), a traz em Overjoyed, de Stevie Wonder. Esperanza canta de um jeito tão doce, tão gracioso, suingado e contagiante, que podemos até perdoar o fato de ela ter feito participação especial no último disco da brasileira Ana Carolina.
Esperanza tem 25 anos, e sua música é de alta qualidade. O trocadilho é inevitável: isso nos dá esperança.
(Lucas Colombo)
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