Nestas últimas semanas deste moribundo ano, não faltou quem associasse as mobilizações dos “coletes amarelos” em Paris ao movimento de, como se convencionou chamar, “Maio de 68” – e os manifestantes atuais deram motivo, é claro, ao preencher cartazes com frases que aludiam àquele episódio. Mas o ano inteiro foi de festa para o cinquentenário dos protestos que marcaram o 1968 do Ocidente. Especificamente do “Maio” parisiense, sobre o qual foi jogada a maior parte dos confetes da festa, dizem que “Foi uma revolução” (não foi; revolução pressupõe ruptura da ordem estabelecida), “Um grito de insatisfação similar ao de 2013 no Brasil” (e tão difuso e contraditório quanto, não?), etc. etc. Não sei se há razões para saudade e exaltação de um ano que gerou muito calor e pouca luz, que viu radicalismos de esquerda e de direita se retroalimentarem (guerrilha socialista, Black Panthers, Primavera de Praga, AI-5...). Só se for por identificação freudiana, nestes tediosamente polarizados anos 2010.
Dois slogans do “Maio de 68” francês provam como a herança cultural daquela época não é tão admirável assim - nem vou falar do “É proibido proibir”, uma contradição em termos e, pior, emitida por quem exibia fotos dos totalitários Mao e Lênin:
1. “A inteligência caminha mais que o coração, mas não vai tão longe”. Tipo de mentalidade que ajudou a moldar esta era de muita sensação e pouca razão, muito hedonismo e pouca responsabilidade. A espetaculosa arte atual e o predomínio quase sufocante da cultura pop que o digam.
2. “Se nossa situação nos arrasta para a violência, é que a sociedade inteira nos violenta”: Infantilidade pura, essa de colocar a culpa sempre nos outros ou no “sistema” (“Não foi a greve que gerou o caos, foi o caos que gerou a greve”, etc.). Também ajudou a modelar um pensamento comum hoje, o “todomundofazismo”, a noção de que, se algo, mesmo antiético, for praticado pela maioria, então “pode”.
Maio de 68 também deu contribuição decisiva para o “marketing da rebeldia”, a ideia de que juventude e rebeldia são um valor em si só (Nelson Rodrigues já a questionou bem melhor do que eu), outro legado bastante contestável. Se for para apontar uma herança positiva – que, sim, toda reação vivaz deixa –, é a dessacralização do sexo. Hoje, o tema é abordado abertamente por pais, filhos, professores e mídia, e jovens, adultos e idosos têm bem mais autonomia para se relacionar com quem quiserem (apesar das crescentes patrulhas à esquerda e à direita). Há também mais diversidade no vestir e no falar (idem). Mas, infelizmente, o desprezo ao método e à reflexão nuançada e o cacoete mental de se dividir as pessoas entre conservadores/“reaças” e progressistas/“fluidos” foi o que mais permaneceu. Passados 50 anos, já é mais do que hora de crescer. Ou envelhecer, como recomendou, com mais humor, Nelson, outra vez.
(Lucas Colombo)
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